quinta-feira, 16 de julho de 2009

EDIFÍCIO 14 BIS - UMA MULTIDÃO DE CARNE E CONCRETO NO CENTRO DE SÃO PAULO

Reportagem realizada no primeiro semestre de 2008 para o curso de pós-graduação em Jornalismo Literário da ABJL.

Fotos: Júlia Masagão





Há sempre alguém esperando pelos elevadores no 14 Bis. Uma mulher com sacolas vinda do mercado; um homem voltando do trabalho; um sujeito indo cobrar uma divida; uma garota acompanhada da irmã portadora de Síndrome de Down; dois jovens mulatos de cabeça raspada, correntes e boné virado. É sempre assim no número 235 da rua Paim, Bela Vista, no centro de São Paulo: movimentado.
As construções do projeto elaborado pelo arquiteto Aron Kogan começaram em 1956.

Inicialmente, o prédio formava, junto com os vizinhos Caravelle, localizado atrás e a direita, e o frontal Demoiselle, o conjunto Santos Dumont. Os nomes foram dados em homenagem às máquinas desenvolvidas pelo aviador brasileiro no início do século passado. Como os projetos aeronáuticos, o 14 Bis é o mais robusto e estável deles.



Pela planta original, são 27 andares, 520 divisórias - entre kitchenettes e apartamentos-, e uma população de 1.686 moradores, segundo dados do último senso do IBGE, vivendo em uma área de 27,9 mil m². Uma multidão de carne e concreto. Os elevadores do 14 Bis têm seus motivos para estarem ocupados.

O primeiro morador que entrei em contato foi Sebastião Francisco Ricardo. Cheguei à casa de Tião, 68, em uma tarde de sábado. Garoava e fazia frio. O dia não inspirava ânimo. Identifiquei-me na portaria e perguntei ao porteiro se ele podia me anunciar. Fui informado que não existe interfones no 14 Bis. “Vai direto. E tome cuidado com o cachorro”. Disto eu já tinha sido avisado. Peguei as escadas e subi direto ao 123.

Tião mora em um apartamento de dois quartos no fim do corredor, à direita. Existem somente dois desses por andares. Um em cada lado, intercalados por 20 kitchenetes de 33 m² cada.

Os corredores são estreitos e agitados. Uma mulher desfila de shorts curto e Havaianas. Crianças brincam, chutam bola e se agridem. Uma porta nunca é igual a outra. Chego e aperto a campainha. Do lado de dentro, o cachorro também se anuncia. Late alto. Seu nome é Duke. Tião me recebe enquanto segura e dá ordens ao cachorro.

Duke é forte como o dono, mas bravo e agitado. Possui uma bocarra. É de tom caramelo, parece resultado do cruzamento entre um chow-chow, raça conhecida pela língua azulada, com pastor alemão. Porém, sua genética possui muitas outras nuances impossíveis de serem identificadas a olho nu. Já a personalidade é rebelde e agressiva. O guardião do apartamento 123 pronto para atacar e ferir frente à menor alteração da brisa que sopra pelo corredor do prédio. Duke cuida do cubículo como fosse sua fazenda.

Sento-me a mesa junto de Tião. O apartamento é simples, porém todo mobiliado. Estante, aparelho de som, jogo de sofás, todos com, no mínimo, cinco anos de uso. Da mesa é possível acompanhar o futebol que passa na TV. Tião é evangélico. Agradece a Deus pela cura do câncer que sofreu sob a língua. Apesar de vivo, não saiu intacto.

O tratamento comprometeu a faringe. A voz daquele homem enorme sai rouca, sofrida, baixa, às vezes esquálida, como se sua garganta estive revestida de areia. Tião me conta que quando chegou ao 14 Bis, o prédio devia ter cerca de 15 moradores. Lembra de forma saudosa do antigo síndico, seu Peixoto. “O melhor que já teve por aqui.”

Peixoto confiava em Tião. Sabia que ele impunha respeito. Em 68, o promoveu da faxina a zelador. Agora, Tião fazia pequenos reparos e cuidava para que arruaceiros não tomassem conta do edifício. Porém, na virada para os 70 a rotina já estava fugindo à ordem. Tião já tinha perdido às contas de quantas vezes havia apagado fogo de cortina, ao mesmo tempo em que os moradores instalavam varais do lado de fora dos apartamentos. Calças, camisas, calcinhas e cuecas estendidas ao léu aumentavam as chances de propagação de um incêndio. Seu Peixoto autorizou Tião para que acabasse com aquilo. “Eu entrava nos apartamentos e derrubava tudo. Quando o morador chegava, eu entregava a trouxa de roupa, falava que tinha pegado lá embaixo. Que foi os vizinhos que tinha derrubado. ‘Se eles tiveram que tirar, por que com ele ia ser diferente?’”, argumentava ele. Tião dá uma risada rouca. Eu o acompanho. O homem se diverte com seus velhos tempos.



Pergunto dos casos de violência no prédio. A Paim já foi uma das áreas mais problemáticas de São Paulo, com uma média de três chamadas policiais por dia. Em dois de novembro de 2003, quando o PCC iniciou sua onda de ataques, a base móvel da rua foi o primeiro ponto a ser atacado na cidade. Depois daquele dia, a viatura nunca mais voltou a manter guarda na viela. Marli, a esposa de Tião se manifesta.

Eles estão casados desde 2002. Este é o segundo casamento dele. No primeiro, a ex-mulher partiu pra Bauru. Ele preferiu ficar. Já para Marli, que tem um filho adolescente, esse ainda é o primeiro. “Aqui só tem vagabundo e maconheiro”, diz ela. “Não é assim não”, rebate ele. “Não é pra falar a verdade? Só tem vagabundo e maconheiro. É verdade, tinha vez que tinha dois, três mortos aí embaixo. Parecia um cemitério”. Tião permanece em silêncio. “Há cinco anos atrás...”. “Mas era briga lá, deles lá, de bandido”, ele interrompe. Marli se anima e desembesta a listar. “Então, coloca ai, ó. Tem um aqui que ficou com a cabeça pro lado de fora. Caiu um daqui de cima, não tá nem com um mês, caiu lá de cima, morreu ai em baixo”, dispara ela sem muita exatidão sobre as datas. Tião permanece quieto até se lembrar de um caso de suicídio em 1966. O sujeito era mineiro. Veio tentar a vida em São Paulo. Porém, perdido na paulicéia, se encontrou viado. Certa vez, voltou pra casa e encheu de desgosto o coração dos pais. Voltando a São Paulo, não suportou a rejeição e se deu um tiro no ouvido. Tião encontrou o corpo.

Percebo que já forcei demais com a sua voz. Que a voz rouca responde a uma velocidade menor do que propõe o exorcismo da memória daquele homem de cabeça calva com alguns cabelos ouriçados nas laterais. O copo d’água está abaixo da metade. Duke está deitado. Agradeço, me despeço e parto. No corredor, Duke levanta a perna e solta um esguicho de urina. Não restam dúvidas, ele é o cão mais temido no 14 Bis. Aquele é o seu território.

O BAR DO ZÉ
Desço as escadas disposto a tomar uma Coca-cola. Pessoas vêm e vão. A espera do elevador é a mesma. O bar do Zé é o primeiro na rua Particular que se estende à frente do 14 Bis, no lado oposto, sob as galerias localizadas do Demoiselle. As galerias foram planejadas para harmonizar a relação residencial e comercial. Muitas delas hoje estão fechadas, mas mesmo assim, dois minimercados, duas lojas de acessórios e importados baratos, além de seis bares ainda resistem na Particular da Paim. Fora o tráfico e negociações ilícitas que acontecem por ali e não possuem endereço fixo.

Como a maioria, o Zé é nordestino e imigrante. Sua freguesia é composta por taxistas, traficantes, moradores e travestis. Chego e peço uma Coca-cola. Ao meu lado, um senhor grisalho rabujenteia por uma vodka. São 14h30. Seu rosto é magro e profundo. Carrega uma nota de dois reais dobrada entre os dedos. O Zé pede o dinheiro ao homem. Ele se recusa a pagar adiantado. Insiste no pedido da bebida. Zé permanece na negativa. O homem é taxista com ponto na rua. Ambos são antigos conhecidos. Zé já perdeu a conta das vezes que o serviu e não viu a cor do dinheiro. Mantém-se irrevogável enquanto coloca as cervejas no freezer. Ambos estão decididos quanto às suas posições. O malandro sabe que não pode fraquejar, que o segredo de sua persuasão é a confiança, apesar dos riscos que venha a assumir com ela. Zé também sabe que não pode ceder. O homem insiste uma última vez. Sem ser atendido, atravessa a rua rumo ao bar ao lado. Eu dou mais um gole em minha Coca-cola. Na mesa do lado de fora, uma travesti conversa com outros dois sujeitos, aparentemente, homossexuais. Na minhas costas, dois homens almoçam a feijoada que a mulher do Zé prepara religiosamente aos sábados há quatro anos, desde que ele comprou o bar e passou da condição de empregado a patrão.

O grisalho volta com a dose de vodka. “Se meu dinheiro não vale por aqui, ele vale em todo lugar”. Zé permanece passivo perante o insulto. O homem continua com os impropérios enquanto bebe do copo de plástico. “Eu sei viver tanto que tenho 35 anos de Paim e não tenho problemas”, diz o taxista orgulhoso de seu currículo. O clima é tenso e hostil, porém, corriqueiro. É como uma queda de braços. Uma disputa por respeito. O grisalho sabe que saiu derrotado e isso implica que, dificilmente, seu golpe volte a funcionar contra o atarracado Zé. O nordestino está vacinado. Agressões seriam medidas desnecessárias e sérias demais para um pequeno mal-entendido cotidiano como aquele. É só mais um episódio para testar como andam os molejos da cintura de ambos. Vitorioso, Zé desfere sua sentença. “É aquela velha história, é olho por olho, dente por dente. Malandro não envelhece nunca.” Durante esses quatro anos, o dono do bar aprendeu que, ou aprendia a ser malandro, ou, na Paim, seria sempre otário. O taxista acaba com a vodka, vira as costas e deixa o bar. Deste golpe, o Zé saiu ileso.

GALÁCEO DIRIGIU A VIDA


Ireney Galáceo sempre gostou de andar à frente de gente importante. Por anos, foi motorista do professor Miguel Reale, intelectual brasileiro, um dos líderes do movimento integralista no país e ex-reitor da USP. Hoje, com a cabeça branca como pipoca, seu Galáceo se lembra esparsamente das viagens que fez ao Rio e Belo Horizonte dirigindo o Lincoln executivo. “Eu viaja muito para lá, depois parei de fumar. Agora eu ando de bengala porque eu fiz, comé que chama lá, invés de fazer no braço...”, diz ele exibindo o raciocínio caótico que aos 83 anos mais conforta do que angustia.

Seu Galáceo mora no 919 com a esposa Aparecida e três de seus quatro filhos. Como no caso de Tião, o apartamento é todo preenchido por uma mobília que avançou no tempo junto com seus donos. Diferente, somente a sala de TV que fica próximo à janela. Seu Galáceo passa os dias em frente ao aparelho televisor. Às vezes, apanha a bengala e desce até a rua para tomar um sol, ver o movimento nos bares e dar um alô para os porteiros. “Pra mostrar que eu tô vivo. Eu fiquei internado, falaram que eu tinha morrido”.

Antes de se mudar pra Paim, era morador do Demoiselle. “O Tião falou pra mim que esse aqui era melhor que aquele lá. Então eu comprei aqui por 15 mil cruzeiro. Infelizmente, casei”, entona ele de forma despretensiosa e solta. Dona Aparecida não dá a mínima. Ela já tinha advertido anteriormente: “Esse ai não fala coisa com coisa”. Aparentemente, são felizes juntos. Estão casados há 33 anos. Nesse período, seu Galáceo conviveu com todas as lendas do prédio. “Se falarem que jogaram botijão de gás é mentira. Eu nunca vi jogar botijão de gás”, diz ele sobre uma das histórias mais remissivas do 14 Bis. Mais tarde fui investigar o fato com o atual síndico, Luís Carlos, e pelo que tudo indica, não existe ninguém que possa afirmar que viu o botijão despencar do alto do prédio.
A memória desconexa de seu Galáceo parece ter uma atração por quedas. Fala sobre um militar que há muitos anos arremessou a esposa do prédio. Eu insisto no militar mas sou mal-entendido. “Se eu briguei? Nunca briguei, nem aqui, nem lá [no Demoiselle]”, fazendo questão de deixar bem claro que sempre foi um boa praça.

O homem tem uma casa em Praia Grande, onde costumava passar os fins de semana. Pergunto se ele tem ido à praia: ‘‘Como? Como eu vou pra lá? De bengala? Como que eu vou pegar o ônibus pra descer? Todo fim de semana eu ia pra lá pra ver como é que tava”, responde culpando a bengala por sua falta de lazer. Um dos filhos deixa o apartamento. Ele se indigna. “Olha lá, foi. Se falar pra ir pra praia, ninguém me leva”.

Apesar de agradável, a conversa com seu Galáceo não é das mais construtivas. As informações lhe saltam a mente como um amontoado de histórias, mas faltam referências e coesão. É difícil estabelecer um roteiro lógico para à entrevista. Confesso que o caos memorial de seu Galáceo, às vezes, também acaba me deixando confuso. Então, procuro por um ponto final para aquele papo. Pergunto, em tom afirmativo e otimista, se o senhor sentado à minha frente no sofá hoje está contente?

“Hoje eu estou feliz. A única coisa que tinha que melhorar era a aposentadoria. O que eu ganho é para pagar o condomínio. Não chega a mile e vinte cruzeiro. Aqui o condomínio é caro. Tem pessoa que não paga, eu pago. Eu não gosto de ficar devendo pra ninguém. Esse negócio de ficar devendo, não é comigo”, diz ele, desenhando um personagem reclamão e engraçado, como se saído de um papo com Carlos Alberto de Nóbrega no humorístico “A Praça é Nossa”, do SBT.

Seu Galáceo ainda despeja diversas lembranças dos tempos que o córrego corria a céu aberto na Nove de Julho, das tardes na quadra a Vai-Vai, das lutas do irmão, o ex-campeão peso leve Pedro Galáceo, porém, apesar de fazerem todo o sentido para seu dono, são difíceis de serem rearranjadas. O retrato da loucura benigna, em sua forma a qual Erasmo de Rotterdan descreveu em seu elogio, a falta de juízo e sentido que coloca lado a lado crianças e idosos, e os conforta fazendo que se entendam tão bem e sejam amigos. E, com o bom humor típico, seu Galáceo encerra. “E o dia que morrer, quero que me queimem, porque... já penso ficar lá embaixo fechado? Quero que me queimem. Mas num queima agora, hein? Agora não”. Tudo bem, pode deixar seu Galáceo.

*Galáceo faleceu em outubro de 2008.

DEZ ANOS DE CRACK NA PAIM



Despeço-me e parto. Volto ao bar do Zé para outra Coca-cola. Desta vez o movimento é menor. Há somente um cliente, Robson. Como o primeiro homem, também taxista. Possui um dragão, sem cores, tatuado no braço direito. Ele puxa papo.

- E ai alemão?
- Beleza.
- Beleza. É corintiano?
- São Paulino.
- Hiii, alemão e são-paulino aqui na Paim tá fodido.

Caso confessasse que além de “alemão”, são-paulino ainda era jornalista, ia achar que eu era o típico otário.

- Olhando pro seu nariz ai já sei. Você é daqueles que mora lá no Morumbi, o pai tem uma empresa, te pôs pra trabalha junto, você estudou na USP, você tinha dinheiro, ai arrumou uma namoradinha e fudeu tudo.

Tá bom, quase isso. Robson bebe uma cerveja, pede para eu o acompanhar. Fico com minha Coca-cola mesmo. Pergunta meu nome. Conta que nos últimos nove dias fez R$ 2,9 mil com o táxi. “Dez anos de crack na Paim não é fácil não”, insinua ele sem dizer muito. Fala alto e com boa dicção. O vocabulário é diversificado e preciso. Tem uma barriga proporcional ao seu passado. Volta sua verborragia para o Zé, que agora eu começo a entender, é o Cristo do pedaço.

- Você vê esse cara ai, feio e pobre. O cara sabe que pra ele vai ser difícil. Que vai ter que dar duro. Mas sabe que se ele trabalhar e fizer uns troco, vai arrumar uma mulherzinha, né não, mãe? - perguntando para a própria esposa do Zé que o auxilia atrás do balcão.

A situação é hilária. Robson é uma máquina inconveniente de verdades. Zé permanece sisudo enquanto é ridicularizado. Um sujeito passa pelo bar rumo aos fundos da rua.

- E ai corintiano?

O homem para, cumprimenta, levanta a camisa e mostra o inesperado: o escudo do Palmeiras tatuado nas costas. Robson fica amarelo. Sabe da ofensa que cometeu. O mal-entendido pode deflagrar uma guerra, mas ambos não estão a fim de conflito. Contornam a situação com alguns “deixa disso”, “tamo aqui, somos amigos”, “muitos anos de Paim”, “isso é coisa de desmiolado”. Considerações à parte, o corintiano e o palmeirense se entendem numa boa. O simpatizante do escudo verde dá uma olhada no relógio, diz que está em sua hora. Segue em frente rumo aos fundos da Particular. Minha Coca também está nas últimas. Pago o Zé e me despeço de Robson. Já do lado de fora do bar, escuto seu conselho:

- Vinicius, só não vai se misturar com coisa ruim. Só de vez em quando pra dar tesão pra transa - recomenda o taxista.

A PRIMEIRA DAMA DO EDIFÍCIO


Madalena Jaschek me recebeu no 2.711 pouco antes do meio dia de um sábado. Ainda vestia roupão. Serviu-me um café no ponto, digno da experiência de uma ex-secretária. Seus cabelos negros escorriam junto ao corpo. Sua pele é clara e a estatura média. Fala bem e com desenvoltura enquanto fuma um Marlboro. Não revela sua idade, mas se nota que tem mais que 40 e, provavelmente, menos que 50. Viveu no 14 Bis desde que chegou da casa da avó no sul. É filha do antigo síndico, Lúcio Jaschek. Se existe uma primeira dama do 14 Bis, é ela.

Madalena é poliglota. Trabalhou como secretária de executivos da antiga Sharp e para a família Jereissati. Hoje, diz que não trabalha mais por opção. Comprou um apartamento com o dobro do tamanho do atual na rua Brigadeiro Luís Antônio, além de ter outros dois alugados no 14 Bis. Pergunto como enxerga todos estes anos vividos no prédio. Ela destila. “Eu amo meu apartamento, amo de paixão, mas hoje eu detesto morar aqui. Detesto a entrada lá embaixo, principalmente, à noite, aqueles botecos. Infelizmente, parece que tudo que não presta parece que vem pra cá. Alugam o apartamento e vão morar doze caras em um kitchenete. E ai nós pagamos o mesmo condomínio”. O telefone toca. Ela pede licença e atende. É de uma loja de eletrodomésticos pedindo referências sobre a cunhada. Quando voltamos à conversa, deixamos à cozinha e partimos para a sala. Duas samambaias ornam cada um dos cantos frontais do cômodo. Um ventilador de teto fica sobre a mesa de jantar. Existem duas estantes, mas nenhuma TV na sala. A mobília parece a mesma dos tempos em que seu pai residia ali. Hoje, está ultrapassada, kitsch. Madalena ascende outro cigarro e continua. “Então, estou de saco cheio disso. A pobreza não é problema, mas má-educação sim. Você pode ser pobre, mas não precisa jogar papel no chão ou cuspir”, fala ela coberta de razão.

Madalena nunca foi casada. Diz que adora ficar noiva. Já o fez cinco vezes. Um deles morreu antes de ser dispensado. Era um italiano. Atualmente, namora um americano, Ronald, de New Jersey. A foto deles em Ubatuba está no porta-retrato. O celular toca. Ela atende. Logo muda para o italiano. Conduz a conversa numa boa. É um convite para um almoço. Ela diz que está com um jornalista e que levará algum tempo. Assim que terminar, retorna. Madalena conhece a Itália, França, Grécia e agora vai para os Estados Unidos. Ela diz que o prédio era melhor conservado nos tempos em que o pai era o síndico, porém não quer seguir a carreira do finado. “Já fui convidada pra ser síndica, mas não gosto de gente batendo na minha porta para eu resolver problemas”. Não pretendo tomar muito mais de seu tempo devido ao almoço recém-agendado. Peço a ela somente que mostre a vista da janela. Ela sugere a do quarto. “‘É melhor”, completa. Do lado de dentro, há uma cama de casal com edredons novos e bem arrumados, um computador, com webcam e internet, que Madalena usa para ficar em contato com o noivo, além de TV e DVD. Na parede, fotos dela em Roma, Florença, Milão e Piza, inclusive jovem e muito bonita. Sobre a vista, Madalena tem razão. De sua janela, o Demoiselle parece um irmão mais novo com metade do tamanho do 14 Bis.

A fachada côncava do 14 Bis se estende de um extremo a outro. É possível avistar todo o Bixiga, os carros que cortam a Nove de Julho, as torres da Paulista, o céu paulistano cinza e poluído, o lixo acumulado no terraço prédio vizinho. Uma vista impactante que Madalena utiliza como seu cartão postal. Antes de partir, ela me leva de volta a cozinha e serve outro café. Doce e saboroso como o primeiro. Os elevadores do 14 Bis continuam a todo movimento.

1 comentários:

Carlos Garcia 7 de fevereiro de 2011 às 14:19  

Cara, sensacional seu texto. Esse edifício sempre povoou minha imaginação até que um dia, aos 15 anos, eu entrei no mesmo.

Desde minha infância, apaixonado pela minha janela, o 14 Bis foi imponente na Skyline da Bela Vista. Eu morava na Conselheiro Ramalho e sempre tive contato viual com o mesmo. Sensacional.

Carlos Garcia

musicaligeira@hotmail.com

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